quarta-feira, junho 29, 2005


Édouard Manet
Boy blowing bubbles, 1867
Museu Calouste Gulbenkian

E TUDO ERA POSSÍVEL
Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer

RUY BELO

terça-feira, junho 28, 2005


Vasco Santana e Beatriz Costa em "A Canção de Lisboa"

FADO DO ESTUDANTE
Que negra sina ver-me assim
Que sorte e vil degradante
Ai que saudades sinto em mim
Do meu viver de estudante

Nesse fugaz tempo de Amor
Que de um rapaz é o melhor
Era um audaz conquistador das raparigas
De capa ao ar cabeça ao léu
Sem me ralar vivia eu
A vadiar e tudo mais eram cantigas

Nenhuma delas me prendeu
Deixá-las eu era canja
Até ao dia em que apareceu
Essa traidora de franja


Sempre a tinir sem um tostão
Batina a abrir por um rasgão
Botas a rir num bengalão e ar descarado
A malandrar com outros tais
E a dançar para os arraiais
Para namorar beber, folgar cantar o fado

Recordo agora com saudade
Os calhamaços que eu lia
Os professores da faculdade
E a mesa da anatomia

Invoco em mim recordações
Que não têm fim dessas lições
Frente ao jardim do velho campo de Santana
Aulas que eu dava se eu estudasse
Ainda estava nessa classe
A que eu faltava sete dias por semana

O Fado é toda a minha fé
Embala, encanta e inebria
Dá gosto à gente ouvi-lo até
Na radio - telefonia

Quando é cantado e a rigor
Bem afinado e com fulgor
É belo o Fado, ninguém há quem lhe resista
É a canção mais popular, tem emoção, faz-nos vibrar
Eis a razão de ser Doutor e ser Fadista!

AMADEU DO VALE/JAIME MENDES

NE: Apetece-me cantar, este é um fado muito especial, cantei-o duas vezes, fi-lo no cenário mais espectacular do mundo, para uma plateia de espanhóis, a outra já a referi num post anterior.
Lembro-me, em casa da minha prima, de ter um ataque de choro quando o "Vasquinho" o cantou, recordo que os meus primos ficaram, realmente, preocupados comigo, porque chorar na "Canção de Lisboa"...

segunda-feira, junho 27, 2005


Sometime during the 1890s, English artist Francis Barraud painted a picture of his brother's dog, Nipper, inquisitively listening to a phonograph. Barraud hoped to sell the painting to a phonograph company, but could not find an interested buyer. After receiving a suggestion to change the trumpet of the machine from black to brass, Barraud went to the Gramophone Company's office to borrow a machine to use as a model. In explaining his request, Barraud showed a photograph of his painting. The manager, Barry Owen, liked the painting and asked if it was for sale. When Barraud replied that it was for sale, Owen agreed to buy the painting if the phonograph could be replaced with a gramophone. -- ..- .-. . ..-

NE: É assim, esperamos isto e dão-nos aquilo.

sexta-feira, junho 24, 2005



NE: Morreu o meu tio-avô Germano, lembro-me de ler para ele e ver os seus olhos brilhar. Eu tinha sete anos e o meu tio Germano não sabia ler.
Adeus, tio Germano

terça-feira, junho 21, 2005



"GAIVOTA"
Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

Alexandre O'Neill
Música de Alain Oulman

NE: Lembro-me de uma noite em que uma fadista das antigas, de xaile e lantejolas, me encantou. "Recordo agora com saudades" que até eu cantei o fado...

segunda-feira, junho 20, 2005


Lucien Freud
Naked Man, Back View, 1991–92
Private collection

NE: A primeira vez que vi um quadro de Freud, este que ilustra o post, foi na sala de espera de um consultório médico, foi numa Newsweek, fiz o que não se deve, rasguei a página da revista e colei-a no meu quarto; ali esteve, até que a minha irmã resolveu acrescentar mais alguns elementos à composição...

Adenda: Lucien Freud é neto de Sigmund.

domingo, junho 19, 2005


Whistler, James
Nocturne in Black and Gold: The Falling Rocket, 1875
Detroit Institute of Arts

"Had I the heavens' embroidered cloths,
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half-light,
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread on my dreams
."

"Tivesse eu os tecidos bordados dos céus,
Envoltos na luz de prata e ouro,
Os tecidos azuis e foscos e de breu
Que têm a noite, a luz e a meia-luz
Derramaria esses tecidos a teus pés:
Mas eu, sendo pobre, apenas tenho os meus sonhos;
Derramaria os meus sonhos a teus pés;
Pisa com suavidade, porque pisas os meus sonhos
."

W.B. YEATS


NE: Peço, desde já, desculpa pela tradução.

sábado, junho 18, 2005


Jim Goldberg
Hollywood, 1989. "Destiny's Shiny Bracelet." Destiny and Napoleon in their squat underneath the Hollywood Freeway. She has just screwed Napoleon for food. Her bracelet was given to her by a gang member who wants to pimp her. She says that she likes to have her picture taken because her uncle used to like to photograph her naked.
Magnum Photos

-Mas o que é o Amor?
A pergunta incomodou-me, mas o que lhe vou dizer?! -Bem, o Amor (só me vinha à memória uns cromos com mais de vinte anos, em que um pequeno casal dizia, o Amor é...), - Bem, o Amor é a coisa mais importante do Mundo.
-Está bem, mas porquê?
-Porque sem Amor, as crianças não sabiam brincar...

quarta-feira, junho 15, 2005


"Lino", Álvaro Cunhal
"Desenhos da Prisão"

É hoje o funeral de Álvaro Cunhal, hesitei muito em fazer este post, talvez por não ser comunista, talvez porque em minha casa se chorou a morte de Sá Carneiro, talvez sejam evidentes resquícios atávicos.
Mas tenho de me curvar perante a História. Álvaro Cunhal teve um papel determinante na História de Portugal do século XX. Cristalizou nos anos 80', é verdade, é um derrotado, é verdade, mas foi a História que o venceu; será que podia fazer outra coisa? Com 76 anos viu cair a fortaleza da sua intectualidade, da sua ideologia; será que podia recomeçar?
Fica aqui o meu tributo a um homem que podia ser o que quisesse, decidiu ser comunista.

terça-feira, junho 14, 2005


Buster-Keaton

O SORRISO
Creio que foi o sorriso,
0 sorriso foi quem abriu a
porta.
Era um sorriso com
muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa,
ficar
nu dentro daquele
sorriso.
Correr, navegar, morrer
naquele sorriso.

EUGÉNIO DE ANDRADE

segunda-feira, junho 13, 2005


Anna Vettori
Ecce Homo, 1984
Proprietà dell'artista

POÉTICA
"O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.
(...) Ecce Homo, parece dizer cada poema."

EUGÉNIO DE ANDRADE

Alfredo Luz, 1989
José Fontinhas (1923-2005)
Fundação Eugénio de Andrade

O SAL DA LÍNGUA
Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

EUGÉNIO DE ANDRADE

NE: Acordei com esta notícia, a morte de Eugénio de Andrade, ainda não sei o que pensar, sei que estou mais pobre. Ao amigo Eugénio, o meu bem-haja.

domingo, junho 12, 2005



POIS
"O respeitoso membro de azevedo e silva
nunca perpenetrou nas intenções de elisa
que eram as melhores. Assim tudo ficou
em balbúrdias de língua cabriolas de mão.

Assim tudo ficou até que não.

Azevedo e silva ao volante do mini
vê a elisa a ultrapassá-lo alguns anos depois
e pensa pensa com os seus travões
Ah cabra eram tão puras as minhas intenções

E a elisa passa rindo dentadura aos clarões."

ALEXANDRE O'NEILL


NE: Quando era miúdo, os meus pais tinham um Mini, eu fazia as viagens deitado na chapeleira, via a paisagem, os outros minis, ali dormia, era o meu sítio preferido, a minha irmã gostava mais do banco, ainda hoje não percebo porquê?! Coisas de mulheres...


Os melhores tradutores de poesia que conheço são poetas, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena... Só um ser dotado de uma sensibilidade inata o pode fazer convenientemente, pois corre-se o risco que a tradução, embora seja sempre uma traição, não se torne em algo pior, um texto oco de sentimentos, tudo sustentado numa lógica de "rimanço".
Antes um sentimento que um soneto...

P.S. "A Poesia é a mais alta expressão do génio português", Eugénio de Andrade

NE: Isto para justificar a preferência por poetas portugueses... Porém, após este post, apece-me logo ler poesia estrangeira...

GREY VILLET
St. Louis, Missouri, 1955
LIFE

SILOGISMOS
"A minha filha perguntou-me
o que era para a vida inteira
e eu disse-lhe que era para sempre.

Naturalmente, menti,
mas também os conceitos de infinito
são diferentes: é que ela perguntou depois
o que era para sempre
e eu não podia falar-lhe em universos
paralelos, em conjunções e disjunções
de espaço e tempo,
nem sequer em morte.

A vida inteira é até morrer,
mas eu sabia ser inevitável a questão
seguinte: o que é morrer?

Por isso respondi que para sempre
era assim largo, abri muito os braços,
distraí-a com o jogo que ficara a meio.

(No fim do jogo todo,
disse-me que amanhã
queria estar comigo para a vida inteira)"

Ana Luísa Amaral

sábado, junho 11, 2005


Arko Data/Reuters
A woman mourns a relative killed in the tsunami, at Cuddalore in Tamil Nadu, India.
1st prize, World Press Photo 2005

SANGUE
"Versos
escrevem-se depois de ter sofrido.
O coração dita-os apressadamente.
E a mão tremente
quer fixar no papel os sons dispersos...

É só com sangue que se escrevem versos."

SAUL DIAS, (1902-1983)

quarta-feira, junho 08, 2005



PORQUE É QUE EU AMO O MEU IRMÃO?

Porque é aquilo que um dia sonhei ser
Porque nasceu com um dom

Porque me toca sempre com o coração
Porque me compreende

Porque conhece a tristeza e a alegria
Porque é puro

Porque é ateu, mas cristão
Porque é complexo

Porque é forte
Porque me defende

Porque é frágil
Porque precisa de mim

Porque é meu irmão, porra!


NE: Tenho muita pena, mas a Sakara é minha!!

René Magritte, (1898-1967)
Castle in the Pyrenees, 1959
Israel Museum, Jerusalem

1510
"Como é feliz a Pedrinha
Rola pela Estrada sozinha
Sem ter cuidados de Emprego
Dos Desafios não tem medo-
Sua castanha Roupagem
Veste Universo de passagem;
Como o Sol, independente,
Brilha só ou conjuntamente,
Cumpre a divina Vontade
Com toda a simplicidade-

EMILY DICKINSON (1850-1886)

NE: Dickinson publicou quatro poemas em vida. "In casual simplicity", é assim, originalmente, o último verso deste poema.

terça-feira, junho 07, 2005


Salvador Dali
Muchacha en la Ventana, 1925
Reina Sofía National Museum

MADRIGAL MELANCÓLICO
"O que eu adoro em ti
Não é a tua beleza
A beleza é em nós que existe
A beleza é um conceito
E a beleza é triste
Não é triste em si
Mas pelo que há nela
De fragilidade e incerteza

O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência
Não é o teu espírito sutil
Tão ágil e tão luminoso
Ave solta no céu matinal da montanha

Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.
O que eu adoro em ti
Não é a tua graça musical
Sucessiva e renovada a cada momento
Graça aérea como teu próprio momento
Graça que perturba e que satisfaz

O que eu adoro em ti
Não é a mãe que já perdi
E nem meu pai

O que eu adoro em tua natureza
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.

O que adoro em ti lastima-me e consola-me:
O que eu adoro em ti é A VIDA!"

MANUEL BANDEIRA, 11 de Julho de 1920

ERRATA: "Não é o profundo instinto" MATINAL??????? Copiar textos da internet tem destes problemas... Até me arrepiei quando me apercebi do erro.

Henri Cartier-Bresson
A eunuch of the imperial court of the last dynasty, China.
Magnum Photos

SE
Se és capaz de conservar o teu bom senso e a calma,
Quando os outros os perdem, e te acusam disso;

Se és capaz de confiar em ti, quando de ti duvidam
E, no entanto, perdoares que duvidem;

Se és capaz de esperar, sem perderes a esperança
E não caluniares os que te caluniam;

Se és capaz de sonhar, sem que o sonho te domine
E pensar, sem reduzir o pensamento a vício;

Se és capaz de enfrentar o triunfo e o desastre,
Sem fazer distinção entre esses dois impostores;

Se és capaz de ouvir a verdade que disseste,
Transformada por velhacos em armadilhas aos ingênuos;

Se és capaz de ver destruído o ideal da vida inteira
E construí-lo outra vez com ferramentas gastas;

Se és capaz de arriscar todos os teus haveres
Num lance corajoso, alheio ao resultado
E perder e começar de novo o teu caminho
Sem que ouça um suspiro quem seguir ao teu lado;

Se és capaz de forçar os teus musculos e nervos
E fazê-los servir se já quase não servem
Sustentando-te a ti, quando nada em ti resta,
A não ser a vontade que diz: Enfrenta!

Se és capaz de falar ao povo e ficar digno
E de passear com reis, conservando-te o mesmo;

Se não pode abalar-te amigo ou inimigo
E não sofrem decepção os que contam contigo;

Se podes preencher todo o minuto que passa
Com sessenta segundos de tarefa acertada;

Se assim fores, meu filho, a Terra será tua,
Será teu tudo o que nela existe.

E não te receies que o roubem.

Mas (ainda melhor que isso tudo)
Se assim fores, serás um HOMEM.

RUDYARD KIPLING

segunda-feira, junho 06, 2005


Steve McCurry
Agra, 1999, Taj Mahal.
Magnum Photos

"Detrás de cada espejo
hay una estrella muerta
y un arco iris niño
que duerme.

Detrás de cada espejo
hay una calma eterna
y un nido de silencios
que no han volado.

El espejo es la momia
del manantial, se cierra,
como concha de luz,
por la noche.

El espejo
es la madre-rocío,
el libro que diseca
los crepúsculos, el eco hecho carne."

Federico Garcia Lorca, Poemas Sueltos

NE: "Todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas", Federico Garcia Lorca

sexta-feira, junho 03, 2005


Fra Angelico
Coronation of the Virgin, Altarpiece from San Domenico, Detail of angels
Le Louvre

TU TENS UM MEDO
"Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno."

Cecília Meireles, Mar Absoluto e outros poemas

quinta-feira, junho 02, 2005


Giorgio de Chirico
La Nostalgie du poète, 1914
Peggy Guggenheim Collection.

"fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga."

José Luis Peixoto; " fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido", in a criança em ruínas

quarta-feira, junho 01, 2005


Greta Garbo

"O teu olhar ficará sempre no meu olhar quando morrer e, morto, contemplar as planícies que serão o teu olhar a anoitecer lento. O teu olhar ficará nas minhas mãos esquecidas e ninguém se lembrará de o procurar aí. Penso: nunca ninguém se lembra de procurar as coisas onde elas estão, porque ninguém sabe o que pensa o fumo, ou as nuvens, ou um olhar."

José Luís Peixoto; excerto de Livro I, in Nenhum Olhar