segunda-feira, dezembro 22, 2003

"(...)O respeitável ancião, com o seu capuz até aos olhos, todo salpicado de neve, as mãos escondidas nas largas mangas de frade, o olho maganão e jovial, esgarça a boca num riso de felicidade sem-fim, e as suas enormes barbas de algodão pendem-lhe até aos pés.

Todas as crianças o querem abraçar, e ele não se recusa, porque é indulgente.

E quanto mais a ceia se anima, mais o seu patriarcal riso se escancara; as bochechas reluzem-lhe de escarlates, as barbas parecem crescer-lhe, e ali está, bonacheirão e venerável, com a importância de um Deus tutelar e amado, como a encarnação sacramental da alegria doméstica.

E no entanto fora, na neve, as pobres crianças cantam as loas: e com vigor as cantam! É que elas sabem que não serão esquecidas: e que daqui a pouco a grade se abrirá, e virá um criado, vergando ao peso de toda a sorte de coisas boas, peças de carne, empadas, vinho, queijos – e mesmo bonecas para os pequenos; porque Santo Claus é um democrata, e, se enche os seus alforges para os ricos, gosta sobretudo de os ver esvaziados no regaço dos pobres.

Tudo isto é encantador. Mas tire-se-lhe a neve, e fica estragado. O Natal com uma lua cor de manteiga a bater numa terra tépida de Primavera, torna-se apenas uma data no calendário. O lume não tem poesia íntima; não há loas; Santo Claus não vem; o papá Natal parece um boneco insípido; não se colhe o mistletoe. Não há mesmo a alegria de abrir a janela, e pôr no rebordo, dentro duma malga, a ceia de migalhas do Natal para os pardais e para os outros passarinhos, que tanta fome sofrem pelas neves. Enfim não há Natal! Foi o que sucedeu este ano...

Resta a consolação de que os pobres tiveram menos frio. E isto é o essencial; pensando bem, se nas cabanas houve mais algum conforto, e se se não tiritou toda a noite entre quatro farrapos, é perfeitamente indiferente que nos castelos as damas bocejassem.

Nem eu sei realmente como, a ceia faustosa possa saber bem, como o lume do salão chegue a aquecer – quando se considere que lá fora há quem regele, e quem rilhe, a um canto triste, uma côdea de dois dias. É justamente nestas horas de festa íntima, quando pára por um momento o furioso galope do nosso egoísmo - que a alma se abre a sentimentos melhores de fraternidade e de simpatia universal, e que a consciência da miséria em que se debatem tantos milhares de criaturas, volta com uma amargura maior. Basta então ver uma pobre criança, pasmada diante da vitrine de uma loja, e com os olhos em lágrimas para uma boneca de pataco, que ela nunca poderá apertar nos seus miseráveis braços - para que se chegue à fácil conclusão que isto é um mundo abominável. Deste sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas, findas as consoadas, o egoísmo parte à desfilada, ninguém torna a pensar mais nos pobres, a não ser alguns revolucionários endurecidos, dignos do cárcere e a miséria continua a gemer ao seu canto!

Os filósofos afirmam que isto há-de ser sempre assim: o mais nobre de entre eles, Jesus, cujo nascimento estamos exactamente celebrando, ameaçou-nos, numa palavra imortal, que teríamos sempre pobres entre nós. Tem-se procurado com revoluções sucessivas fazer falhar esta sinistra profecia – mas as revoluções passam e os pobres ficam. (...)"


"O Natal", in Cartas de Inglaterra, Eça de Queirós



Nota do Editor: Um ESCRITOR é intemporal.