quinta-feira, março 31, 2005


Robert Doisneau
Sidelong glance, 1942
http://www.masters-of-photography.com

"DA VOZ DAS COISAS"
Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.


FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

Joseph Mallord William Turner, 1775-1851
Heidelberg circa 1844-5
Tate Galery, London

Castelos de Areia
Não era dos castelos mais bonitos,
não tinha torre de menagem, nem ameias,
nem couraça; nalgumas paredes escorriam
algumas lágrimas, noutras, a saudade desses momentos;
naquele muro, um abraço, no outro, um sorriso;
era uma fortaleza mágica,
o passado e o futuro viviam naquele presente,
o presente era o guardião,
mas era a felicidade quem lá habitava.
NE: Isto foi tudo aquilo que sonhei do alto da minha imaginação.

segunda-feira, março 28, 2005


Sargent, John Singer
Garden Study of the Vickers Children, c. 1884
Flint Institute of Arts, Michigan

"Interrogação"
Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos Cânticos.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.

Camilo Pessanha

sábado, março 26, 2005


Matthias GRÜNEWALD
O Retábulo de Isenheim
Musée d’Unterlinden, France

"A Flor"
-Je travaille tant que je peux et le mieux que je peux, toute la journée. Je donne toute ma mesure, tous mes moyens. Et après, si ce que j'ai fait n'est pas bon, je n'en suis plus responsable; c'est que je ne peux vraiment pas faire mieux.
Henri Matisse

Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção , outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era de mais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!

Almada Negreiros

NE: Feliz Páscoa!

quarta-feira, março 23, 2005


Yann Arthus-Bertrand
Coeur de Voh, Nouvelle-Calédonie
LA Terre vue du Ciel

CORAÇÃO SEM IMAGENS
Deito fora as imagens.
Sem ti, para que me servem
as imagens?

Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em qualquer parte
e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.

Preciso habituar-me
ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisíveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.

Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão
felicidade a ninguém.

RAUL DE CARVALHO

Joseph-Marie Vien
Love Fleeing Slavery
Princeton University Art Museum

O AMOR E O TEMPO
Pela montanha alcantilada
Todos quatro em alegre companhia,
O Amor, O Tempo, a minha Amada
E eu subíamos um dia.

Da minha Amada no gentil semblante
já se viam indícios de cansaço;
O Amor passava-nos adiante
E o Tempo acelerava o passo.

- «Amor! Amor! mais devagar!
Não corras tanto assim, que tão ligeira
Não pode com certeza caminhar
A minha doce companheira!»

- Súbito, o Amor e o Tempo, combinados,
Abrem as asas trémulas ao vento...
- «Por que voais assim tão apressados?
Onde vos dirigis?» - Nesse momento

Volta-se o Amor e diz com azedume:
- «Tende paciência, amigos meus!
Eu sempre tive este costume
De fugir com o Tempo... Adeus! Adeus!»
ANTÓNIO FEIJÓ

segunda-feira, março 21, 2005


Andrea MANTEGNA
The Madonna of the Cherubim
Pinacoteca di Brera, Milan

ADEUS
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes
E eu acreditava.
Acreditava.
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

NE: Dia Mundial da Poesia II
Este foi o poema que me fez descobrir a poesia, já lá vão dois anos. Fui levado ao colo...

domingo, março 20, 2005


Yann Arthus-Bertrand
Lisboa
La Terre vue du Ciel

"Liberdade"

O poema é
A liberdade

Um poema não se programa
Porém a disciplina
- Sílaba por sílaba -
O acompanha

Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos

Sophia de Mello Breyner Andresen

NE: Dia Mundial da Poesia...

Giotto di BONDONE
The Mourning of Christ, c. 1305
Fresco
Cappella dell'Arena, Padua

"UM AMOR"
Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão.
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus, do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um pricípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali, continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.

Nuno Júdice

sábado, março 19, 2005


Joseph Vien
Le marchand d'amours
Fontainebleau, Musée national du château

II
Não um adeus distante
Ou um adeus de quem não torna cá,
Nem espera tornar. Um adeus de até já ,
Como a alguém que se espera a cada instante.

Que eu voltarei. Eu sei que hei-de voltar
De novo para ti, no mesmo barco
Sem remos e sem velas, pelo charco
Azul do céu, cansado de lá estar.

E viverei sem ti como um eflúvio, uma recordação.
E não quero que chores para fora,
Amor, que tu bem sabes que quem chora

Assim, mente. E, se quiseres partir e o coração
To peça, diz-mo. A travessia é longa... Não atino
Talvez na rota, Que nos importa, aos dois, ir sem destino?

Álvaro Feijó, "Os dois sonetos de Amor da hora Triste"

NE: Viver em poesia...

quarta-feira, março 16, 2005


Ecce Hommo
Escola Portuguesa sec. XV
Museu Nacional de Arte Antiga

Tenho que escolher o que detesto -
ou o sonho, que a minha inteligência
odeia, ou a acção, que a minha
sensibilidade repugna; ou a acção,
para que não nasci, ou o sonho, para
que ninguém nasceu.

Resulta que, como detesto ambos,
não escolho nenhum; mas, como hei-
de, em certa ocasião, ou sonhar ou
agir, misturo uma coisa com outra.

Bernardo Soares

terça-feira, março 15, 2005


Vanessa Fernandes
Cornucópia
http://galerias.escritacomluz.com/solta/

BLUES DA MORTE DE AMOR
já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida.
mas afinal não morri, como se vê, ah não
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.

a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.

há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes. uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete:- morrer ou não morrer, darling, ah, sim.

Vasco Graça Moura

segunda-feira, março 14, 2005


Bruce Davidson
New York City. 1992. Baby robin with mother and worm in Central Park.
Magnum Photos

Foi fantástico ser a primeira pessoa a dar os parabéns ao pai, foi fantástico ser das primeiras pessoas a ver um bebé com horas de vida, foi fantástico ver o sorriso da mãe após ter o filho, foi fantástico ver o brilho dos olhos das tias.
São estes momentos que ficam, somos feitos de coisas pequeninas. Senti-me tão pequenino ao lado daqueles três quilos duzentos e cinquenta e cinco gramas, era muito maior que eu.

quinta-feira, março 10, 2005


Vincent Van Gogh
"The Starry Night", 1889
Museum of Modern Night(MoMA), New York
Houve noites em que olhava as estrelas de cima para baixo





NE: Hoje encontrei isto, não me lembrava de ter escrito, estava "entalado" entre dois livros de poesia, um poemário e uma antologia de poemas recolhida por Vasco Graça Moura.
"Looking at the stars always makes me dream"- disse Van Gogh.

terça-feira, março 08, 2005


Thomas Grill
Taxi from Giza to the center
www.parasitaere-kapazitaeten.net

NE: Lembras-te?

sábado, março 05, 2005


Steve McCurry
SRI LANKA. Colombo. 1995. Boy wearing tin glasses.
Magnum Photos

Os meus amigos têm olhos como os meus.
Verdes, castanhos, negros, azuis,
mas são sempre, sempre, castanhos como os meus.
Riem como eu e choram como os meus,
verdes, castanhos, negros, azuis,
mas são sempre, sempre, castanhos como os meus.